segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Clown, um viajante do tempo


em 25/10/2003 por Ana Elvira Wuo

Na rota das caravanas da Idade Média, as feiras e praças públicas se constituíam nos principais entrepostos comerciais e, conseqüentemente, nos locais de maior afluência popular. Nelas a vida acontecia assim: uns vendiam sua produção, outros abasteciam e todos se inteiravam das novidades trazidas pelos mercadores. Essa efervescência contribuía para torná-las ponto de encontro de artistas que perambulavam pelas estradas: os saltimbancos. Esses artistas que se expressavam nas formas mais variadas - acrobacia, equilibrismo, salto, ilusionismo, mímica, ventríloqua, música etc. - exibiam-se ao ar livre para qualquer platéia. Não se fixavam em nenhum lugar porque traziam no sangue o nomadismo atávico (OLIVEIRA,1990).

Numa sociedade marcada por uma conduta de convívio tendendo mais para a seriedade, a arte de fazer rir tem viajado através dos tempos, alterando o tom ríspido das ações das pessoas e das instituições, promovendo aquilo que todos buscam como meio para burlar a rigidez social, o riso. O meio burlesco é representado desde os primórdios por personagens cômicos que desmascaravam o rigor social por meio de uma cultura popular que parte de uma lógica específica marcada pela contradição e ambigüidade, isso influenciou a lógica do circo.

Segundo BAKHTIN (1987), na Idade Média e no Renascimento, o riso se manifestava de várias formas, opondo-se à “cultura oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época”, é o cômico fazendo parte da cultura popular. Dentro dessas manifestações, faziam parte do carnaval, ritos e cultos cômicos os bufões tolos, gigantes, anões e monstros, palhaços de diversos tipos e categorias. O riso no contexto de Rabelais, tem função de libertar a sociedade da lógica dominante do mundo. Ele transforma a seriedade, propondo significados que permeiem as trocas da tonalidade da rigidez à comicidade, com caráter renovação, de morte ao antigo. No cômico, a morte não aparece como uma oposição à vida, mas como uma fase necessária para a renovação (BAKHTIN,1987).É de alguma maneira o aspecto festivo do mundo inteiro, em todos os seus níveis, cria uma espécie de segunda revelação do mundo através do jogo e do riso (BAKHTIN,1987).

Dentro desse contexto, DUARTE (1995) coloca que existem manifestações portadoras de uma lógica diferente das nações racionalizantes, sendo as primeiras valorizadoras de espetáculos verossímeis e representativos de um real, principalmente, nos espetáculos de teatro e circo, predominando nessas perspectivas a ambigüidade e o descomprometimento com os esquemas racionais.

Se avaliarmos, o clown por essa lógica diferente das noções racionalizantes, compreenderemos que ele desempenha função semelhante à dos bufões e bobos medievais quando brinca com as instituições e valores oficiais. Ele, pelo nome que ostenta, pelas roupas que veste, pela maquiagem (deformação do rosto), pelos gestos, falas e traços que o caracterizam, sugere a falta de compromisso com qualquer estilo de vida, ideal ou instituição. É um ser ingênuo e ridículo; entretanto, seu descomprometimento e verdadeira ingenuidade lhe dão poder de burlar situações, pessoas com certa impunidade (BURNIER,1996). Apesar disso, os personagens bárbaros, os artistas, nômades, desenraizados, quase vagabundos, são principalmente civilizadores e exercem ricas funções de produção, transformação e difusão cultural (DUARTE,1995).

Esse passageiro ao avesso, se materializa nos personagens cômicos, nos clowns, nos palhaços de feira; está embutido em todos os seus ancestrais cômicos, revelando as imagens de corpos que estremecem no devaneio bipolar de sonhos-realidades, no espírito do riso que traspassa o som de nossa memória do picadeiro e capta em fuga nossas ilusões. O riso é mistério que desmistifica o opressor. Segundo BURNIER (1996), o princípio desmistificador do riso, presente na cultura popular medieval renascentista, apareceu no cômico circense, fundamentado basicamente na figura do palhaço. Em suas andanças pelo tempo, o clown ocupou diversos espaços: a rua, a praça, a feira, o picadeiro, o palco, o cinema.

Contextualizar esses personagens e o riso em si, seria fechar a criatividade em formas e tempos. Arte e espírito cômico passeiam pelos espaços, dirigindo-se ao âmago da criação sem se estagnarem no passado ou no presente, mas envolvidos com o clima de fugas e devaneios de corpos em desequilíbrio social, que passam a formar as linhas da travessia do trapezista pelos olhos do espectador na corda bamba, saltando para a bola vermelha do nariz do clown e escorregando no redondo do mundo, fazendo círculos no grande picadeiro terrestre, veículo condutor do viajante nômade, o clown.

Vemos que, no decorrer da história, esses atores, tipos cômicos, palhaços, bufões não deixaram de fazer parte do divertimento das pessoas, apesar do controle existente sobre eles. Esses artistas resistiram até nossos dias, porque esse corpo se tornou resistente a regras e normas e se transformou. Ele é o corpo do artista que precede o espírito e o corpo dos atores, cômicos, clowns, para ainda nos fazerem rir das dificuldades da vida. Resiste até nossos dias com uma lógica específica como movimento contrário ao controle social e aos processos civilizadores. Olhamos para esse movimento como um tipo de resistência a qual a arte imprime, embora existam processos para estabelecer o funcionamento das estruturas sempre existirá na arte o mecanismo de adaptação e transformação, que guarda a existência secreta de outras divindades que formam a identidade de subverter independente da realidade existente. É a alma, o espírito de Dionísio se mostrando em todas as partes e em todos, buscando a renovação por meio da ressurreição do divino, representado por Dionísio, e da morte de antigas convenções.

O viajante que passa pelos tempos, participa na construção de sonhos, de esperança e de alegria, para comungar e consumar o seu ato e ofício em que os problemas do clown são solucionados pelo globo vermelho visto por meio do grande espetáculo dos fools(espíritos dos clowns), subvertendo e burlando a ordem das coisas para que o espectador adorne-se com a arte de rir da sua própria dor (WUO,1999).

“O clown nos ensina rir de nós mesmos”(MILLER,1989).

“Respeitável público...”

Leia o artigo de Ana Elvira Wuo sobre clowns publicado originalmente na revista Bife, de Porto Alegre (www.bife.com.br)

Fonte:
http://www.opalco.com.br/foco.cfm?persona=materias&controle=65

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