Processo criativo para o espetáculo: aMar.
Tia Júlia tinha olhos de coruja. As grandes e grossas lentes de seus óculos faziam com que seus olhos ficassem enormes, e quando piscavam me faziam lembrar os olhos de uma coruja que eu tinha visto num livro da escola. Ela ficara viúva pouco após o casamento, mas continuava casada com a imagem do marido que ficava em cima de uma de uma mesinha, misturada com pequenos bibelôs, um jarro com rosas de plásticos e santinhos. Ah... a casa de tia Júlia era pequena, branca, com um murinho na frente. Dentro parecia uma casa de bonecas, era como se ela tivesse casado na semana passada tamanha era a organização e limpeza. Paredes brancas com pequenos quadros de santos enfeitados com fitas, poucos móveis antigos, mas eram tão bem cuidados que pareciam novos. A casa tinha um ar virginal como a sua dona, uma eterna noiva. Na falta de filhos ela havia adotado as poucas crianças da rua, e eu sempre buscava uma desculpa para entrar na sua casinha, olhar os bibelôs que pareciam brinquedos, as velhas fotos, os paninhos de crochet que cobriam os móveis, a profusão de flores de plásticos... era quase como se eu pudesse entrar na casa de uma das minhas bonecas e brincar com elas. Ela sempre oferecia algo, alguma guloseima, doces, bolos... quase posso sentir o aroma. Nunca vi aquela casa desarrumada ou mal cheirosa, sempre perfeita, como a própria tia Júlia que estava sempre impecável com seu cabelo chanel bem penteado, a roupa sempre bem passada, a voz quase inaudível combinando com seu corpo pequeno e magro, até a bengala que usava parecia aumentar a perfeição de seu jeito suave. Ela não gostava que entrássemos em seu quarto, como se fosse um lugar de segredo. Uma vez ela disse que mocinhas não deviam entrar em quarto de mulheres casadas, como se pudéssemos adivinhar o que estava impregnado nas paredes e no colchão da cama. Mas um dia ela me deixou entrar, e era como se tivesse aberto um baú de tesouros... e lá estava, pendurado em um cabide forrado de tecido, o bem mais precioso, o vestido de noiva de tia Júlia, tão branquinho... com cheiro de talco, era longo com longas mangas, pequenas flores de organza enfeitavam o busto e o pulso, simples... apenas pequenas flores... a grinalda enfeitada com as mesmas flores do vestido. Olhei para tia Júlia e fiquei a imaginar como teria sido seu rosto jovem com aquela grinalda na cabeça... o cabelo com certeza era o mesmo, pois ela era daquela geração firme que não acompanha as flutuações dos modismos, rígidos em seus padrões estéticos. De uma coisa tenho certeza, o rosto, salvo algumas rugas e a flacidez natural de vida vivida, teria essa mesma placidez de quem não tem pressa, de quem não conta as horas e os anos, ela própria me parecendo não pertencer a tempo algum.
Michelli Fábia